Brasília, quarta-feira, 12 de junho de 2024 - 20:47 | Atualizado em: 17 de junho de 2024 - 8:51
TRABALHO INFANTIL
O combate ao trabalho infantil no Brasil e a inadmissibilidade do aumento da idade mínima para o trabalho*
Por: Luciana Paula Conforti** e Evandro Pereira Valadão Lopes***
No dia 4 de agosto de 2020, a Convenção 182 da OIT sobre as piores formas de trabalho infantil alcançou a histórica ratificação universal, o que significa dizer que todos os 187 países-membros que integram a OIT (Organização Internacional do Trabalho) a subscreveram, feito jamais visto nos mais 100 anos de existência do referido organismo internacional¹.
No Brasil, a Convenção 182 da OIT foi promulgada pelo Decreto 3.597, de 12 de setembro de 2000, que traz a Lista TIP (Lista das Piores Formas de Trabalho Infantil)2.
O tema da campanha de 12 de junho no Brasil, relativa ao Dia Mundial de Combate ao Trabalho Infantil, correalizada pelo FNPETI (Fórum Nacional de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil), Justiça do Trabalho, MPT (Ministério Público do Trabalho), MTE (Ministério do Trabalho e Emprego) e OIT, é “trabalho infantil que ninguém vê”, para conscientizar “sobre o trabalho infantil como grave violação dos direitos humanos e uma forma de violência a crianças e adolescentes”.
A campanha ilustra diversas atividades realizadas por crianças e adolescentes, enquadradas nas Lista TIP, como o trabalho nas ruas, por exemplo3.
A Justiça do Trabalho, por meio do Programa de Combate ao Trabalho Infantil e de Estimulo à Aprendizagem do Conselho Superior da Justiça do Trabalho, realizado pelos tribunais regionais do Trabalho, está engajada desde 2012 na luta pela erradicação do trabalho infantil e auxilia o Brasil a cumprir o compromisso assumido diante da comunidade internacional de extinguir as piores formas de trabalho infantil, com a promoção de encontros, estudos técnicos, seminários e debates de maneira contínua4.
Segundo dados recentes da “Pnad Contínua Trabalho de Crianças e Adolescentes”, de 2023, o trabalho infantil voltou a crescer no Brasil e “chega a 1,9 milhão de crianças e adolescentes”, o que representa “4.9% com idades entre 5 e 17 anos”, sendo que “756 mil exercem atividades perigosas, com riscos de acidentes ou prejudiciais à saúde, enquadradas nas piores formas de trabalho infantil, como operação de máquinas, manuseio de produtos químicos e extração de minério”5.
Nesse sentido, oportuno o tema escolhido para a campanha deste ano no Brasil, assim como o Projeto de Lei 3.697/21, do senador Fabiano Contarato (PT-ES), cujo relator é o senador Paulo Paim (PT-RS), que altera o art. 405 da CLT (Consolidação das Leis do Trabalho), para proibir o trabalho de crianças e adolescentes nas ruas, praças e outros logradouros. A proposta legislativa em questão foi aprovada na Comissão de Direitos Humanos do Senado e aguada relatoria na CCJ (Comissão de Constituição e Justiça)6.
Por outro lado, inadmissível a PEC (Proposta de Emenda à Constituição) 18/21 (e anexadas), que altera o art. 7º, inciso XXXIII da Constituição, para autorizar o trabalho sob o regime de tempo parcial, a partir dos 14 anos de idade.
Em 2021, causou profunda preocupação a discussão da referida PEC e no início de junho de 2024, houve parecer sobre a admissibilidade, na CCJ da Câmara dos Deputados7.
Segundo Arruda, Cesar e Oliva, sobre as PEC que objetivam a redução da idade para o trabalho, em especial a PEC 18/11, além de não atenderem aos interesses dos adolescentes:
[...] atentam contra a proteção integral e absolutamente prioritária que lhes deve ser conferida, inquestionavelmente violam o princípio do não retrocesso social e se chocam com o comando de elevação progressiva da idade mínima para o trabalho, que nunca deve ser inferior à do término do ensino compulsório8.
A Anamatra (Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho), por meio de nota técnica, apresentou posição contrária à PEC 18/11 e apensadas, expondo, entre outros fundamentos, que a medida constitui “verdadeiro retrocesso no sistema de tutela de direitos fundamentais e, especificamente, à proteção da criança e do adolescente”, acrescentando que:
[...] A Constituição Federal de 1988, inicialmente, vedou qualquer trabalho para os menores de 14 anos, salvo na condição de aprendiz, a partir dos 12 anos. Contudo, a Emenda à Constituição 20, de 15 de dezembro de 1998, alterou o inciso XXXIII do artigo 7º e fixou a idade mínima para o trabalho de 14 para 16 e em 14 anos para o aprendizado. A alteração constitucional veio ao encontro da Convenção 138 da OIT, ratificada pelo Brasil, e a necessidade de o governo brasileiro enfrentar o grave problema da exploração do trabalho infantil. A OIT, na referida Convenção 138, estabeleceu que a idade mínima para a admissão no emprego não fosse inferior ao fim da escolaridade obrigatória, nem inferior a 15 anos, admitindo-se o patamar de 14 anos, como primeira etapa, para os países insuficientemente desenvolvidos (art. 2º, 3º e 4º). E nesse aspecto, não se pode olvidar, que o Brasil ampliou o tempo de escolaridade obrigatória de 8 para 9 anos no ensino fundamental, o que importa em sua conclusão aos 14 anos e, do ensino médio, aos 17 anos (EC 59/09)” [...]9.
Além disso, a nota técnica aponta que:
Não são aceitáveis os argumentos favoráveis ao trabalho da criança e do adolescente sob o pretexto de tirá-lo das ruas ou do crime, pois as estatísticas demonstram que, quanto mais cedo se começa a trabalhar, menor é a renda quando adulto, na medida em que há abandono dos estudos, da formação e da profissionalização. Abandono do próprio tempo de amadurecimento e conscientização das responsabilidades10.
Por ocasião da 112ª Conferência Internacional do Trabalho pela OIT, em Genebra, Suíça, o dia 12 de junho é marcado por sessão especial, com o tema “Cumpramos nossos compromissos: acabemos com o trabalho infantil” e pela comemoração dos 25 anos da aprovação da Convenção 182 sobre as piores formas de trabalho infantil, com destaque para a ratificação universal do citado instrumento. A OIT ressalta, ainda, a necessidade de se encontrar soluções multilaterais para problemas globais, reforçando que o trabalho infantil viola seriamente os direitos fundamentais e que cabe aos Estados, às organizações e à comunidade internacional observar a devida diligência nas cadeias de abastecimento globais. Países como a Etiópia, Guiné, Malawi e Siri Lanka alteraram suas legislações para ajustá-las quanto à idade mínima para o trabalho, o que foi relatado pela OIT11.
Assim, enquanto há união de esforços nos âmbitos nacional e internacional para a redução do trabalho infantil, a PEC 18/11 e anexadas vêm em sentido diametralmente oposto, com o risco de expor crianças a empregos para os quais não estão preparadas em termos de conhecimento, emocional e fisicamente.
Um dos maiores desafios a serem enfrentados no Brasil e em outros países é a naturalização desse tipo de exploração, seja por questões culturais, no sentido de que o trabalho é positivo para o desenvolvimento das crianças ou por razões econômicas, para a contribuição no sustento da família.
As crianças, devido à sua fragilidade, estão mais sujeitas a acidentes e doenças no trabalho do que os adultos, inclusive por não terem maturidade suficiente para perceberem os possíveis perigos das atividades a serem executadas. Além disso, muitas atividades podem ser prejudiciais ao bom desenvolvimento físico, moral e psicossocial da criança, sendo por essas e por outras razões, absolutamente proibidas no Brasil. Ademais, o trabalho pode acarretar traumas psicológicos advindos do amadurecimento precoce, do enfraquecimento dos laços familiares e do prejuízo ao desenvolvimento da escolaridade, e, consequentemente, das oportunidades.
A Constituição Federal de 1988 proíbe o trabalho por menores de 16 anos, salvo na condição de aprendiz aos 14, além da execução de trabalho noturno, perigoso e insalubre por menores de 18 anos (art. 7º, XXXIII). Referido diploma atribui ao Estado brasileiro assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, os direitos à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, e a oferecer proteção especial diante de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão, com especial proteção às garantias trabalhistas e previdenciárias (§ 3º, do art. 227).
O ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente) — Lei 8.069, de 13 de julho de 1990 —, deixa claro que a criança e o adolescente gozam de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, assegurando-se todas as oportunidades e facilidades, para os respectivos desenvolvimentos físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e de dignidade e que tais direitos são garantidos sem qualquer discriminação, como idade, sexo, raça, etnia ou cor, entre outros (Art. 3º).
No plano de controle de convencionalidade, ao observarmos se a legislação do Brasil está de acordo com as normativas internacionais com as quais o Estado se comprometeu, as previsões protetivas a crianças e adolescentes vão muito além. O Brasil é signatário de diversos tratados de direitos humanos e Convenções da OIT que protegem crianças e adolescentes, como a Convenção 138 — idade mínima para o trabalho —, além da Convenção 182 — proibição das piores formas de trabalho infantil e ações para a sua eliminação.
É importante frisar que as convenções internacionais do Trabalho trazem patamares mínimos civilizatórios e que cabe aos países-membros da OIT avançarem em suas disposições internas e não retrocederem, para voltar a impor idade mínima para o trabalho inferior ao que hoje prevê a Constituição de 1988, pois o Brasil já avançou nesse aspecto e não há nada que justifique, em benefício das crianças e adolescentes, a redução da idade mínima para o trabalho. Como se viu, milhares de crianças e adolescentes estão trabalhando nas piores formas, vedadas por lei, o que além de colocar em risco suas integridades física e psicossocial, também prejudica os estudos.
Destaca-se que já houve a apresentação de outras PEC (propostas de emendas à Constituição) com o mesmo objetivo de redução da idade, citando-se a título exemplificativo, as de números 191/00, 271/00, 152/03, 268/08 e 363/09, todas rejeitadas. Não houve qualquer alteração da situação fática-social do país, o que leva à inadmissibilidade da redução da idade para o trabalho. Ao contrário, houve o agravamento do trabalho infantil, com o aumento dos índices, como já demonstrado, o que requer o fortalecimento das medidas de proteção e não a respectiva flexibilização.
O trabalho infantil é um dos problemas mais graves e desumanos em nível mundial, motivo pelo qual, é necessário que toda a sociedade, parlamentares e a comunidade jurídica estejam atentos para impedir qualquer tipo de fragilização da proteção legal, principalmente a redução da idade mínima para o trabalho, sob pena de inegável retrocesso social, o que além de contrariar a Convenção 138 e a Convenção 182 da OIT, viola o princípio da progressividade, previsto no Art. 26 da Convenção Americana de Direitos Humanos12.
(*) Título original
(**) Presidente da Anamatra (Associação Nacional de Magistrado da Justiça do Trabalho), Doutora em Direito, Estado e Constituição (UnB), juíza do Trabalho do TRT da 6ª Região (PE).
(***) Ministro do TST (Tribunal Superior do Trabalho), coordenador nacional do Programa de Combate ao Trabalho Infantil e Estimulo à Aprendizagem da Corte.
______________
1 CONFORTI, Luciana Paula. PORTO, Noemia Garcia. Convenção da OIT faz história: o compromisso global para erradicar o trabalho infantil. Disponível em: https://www.amatra9.org.br/artigo-convencao-da-oit-faz-historia-o-compromisso-global-para-erradicar-o-trabalho-infantil/#. Acesso em: 11 jun 2024.
2 Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/D3597.htm#. Acesso em: 11 jun 2024.
3 Disponível em: https://www.ilo.org/pt-pt/resource/news/campanha-lanca-olhar-para-invisibilidade-do-trabalho-infantil-no-brasil. Acesso em: 11 jun.2024.
4 Disponível em: https://tst.jus.br/web/trabalho-infantil. Acesso em: 11 jun 2021.
5 Disponível em: https://oglobo.globo.com/economia/noticia/2023/12/20/trabalho-infantil-volta-a-crescer-no-pais-e-chega-a-19-milhao-de-criancas-e-adolescentes.ghtml. Acesso em: 11 jun 2024.
6 Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/D3597.htm#. Acesso em: 11 jun 2024.
7 Disponível em: https://www.diap.org.br/index.php/noticias/agencia-diap/91851-pec-do-trabalho-infantil-recebe-parecer-favoravel-do-relator. Acesso em: 11 jun 2024.
8 ARRUDA, Kátia Magalhães; CESAR, João Batista Martins; OLIVA, José Roberto Dantas. A PEC 18/11 e o retrocesso no combate ao trabalho infantil. Disponível em: https://www.correiobraziliense.com.br/opiniao/2021/12/4973191-a-pec-18-2011-e-o-retrocesso-no-combate-ao-trabalho-infantil.html. Acesso em: 28 ago 2022.
9 Disponível em: https://www.anamatra.org.br/imprensa/noticias/31551-anamatra-discute-mobilizacao-contra-pec-18. Acesso em: 27 ago 2022.
10 Disponível em: https://www.anamatra.org.br/attachments/article/24477/pec-18-2011_nota-tecnica-formatada_agosto2015.pdf. Acesso em: 11 jun 2024.
11 Disponível em: https://acrobat.adobe.com/id/urn:aaid:sc:VA6C2:324e6c9a-6e69-4866-9e8d-3c27ae2aab27 p, 21-22. Acesso em: 11 jun.2024.
12 REIS, Daniela Muradas. O princípio da vedação do retrocesso no Direito do Trabalho. São Paulo: LTr, 2010.
Artigo publicado pela Agência Diap.
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