Brasília, segunda-feira, 1 de abril de 2024 - 10:59
Os 60 anos do golpe deve servir para celebrar a democracia
Por: Carolina Maria Ruy*
Conhecer a história não significa prender-se ao passado. Essa diz muito sobre o presente e sobre o futuro.
Abordo 5 motivos que reforçam a importância de fazer dos 60 anos do golpe militar, data de reafirmação da democracia e da soberania, tanto por parte dos cidadãos e cidadãs, quanto por parte do Poder Público.
1. Honrar a memória dos que lutaram.
É preciso honrar aqueles que lutaram na resistência. Sob dura repressão, a luta contra a ditadura exigiu coragem e desprendimento. Organizados muitas vezes de forma clandestina, em partidos e grupos de esquerda, ou equilibrando-se em maneiras de driblar a vigilância, como parte da imprensa alternativa, sindicatos e entidades de classe, muitos se dedicaram ao combate ao regime, expondo-se ao risco da tortura e morte.
Segundo o relatório “Brasil: Nunca Mais”, pelo menos 1.918 prisioneiros políticos afirmaram que foram torturados entre 1964 e 1979 (casos de tortura e mortes continuaram mesmo depois da Anistia de 1979). Cada vez mais fica claro que a ditadura promoveu o horror e o arbítrio em larga escala. Mas somente o reconhecimento oficial de cada crime levará à almejada justiça e reparação.
2. A ditadura aprofundou a cultura da violência.
A violência do regime reforçou o caráter repressivo da polícia e acentuou a discriminação contra o povo pobre. A prática da tortura foi aprimorada e, com o fim da ditadura, passou a agravar a violência policial. Além disso, o regime incentivou grupos de extermínio como o esquadrão da morte e grupos de milícias.
Segundo o sociólogo Benedito Mariano, que foi ouvidor das polícias de São Paulo: “A lógica do policiamento ostensivo-repressivo executado por instituições fechadas, aquarteladas, com essa visão militar, vem do Império. E a ditadura militar reforçou esse caráter repressivo do sistema. A figura da polícia-política foi construída durante os períodos da ditadura Vargas (1937 a 1945) e a ditadura militar (1964 a 1985). Esta polícia servia muito mais aos interesses do Estado autoritário do que à população”, disse em entrevista para a Revista Princípios1.
3. A ditadura desfalcou o País de importantes quadros políticos.
Com a prática ostensiva de perseguição, censura, tortura e mortes, o regime privou o País de quadros políticos, culturais e do movimento social, que poderiam fazer a diferença atualmente.
O regime asfixiou o jornal Última Hora, fundado pelo jornalista Samuel Wainer, até ele ser vendido para a Folha de S.Paulo, em 1971. Era jornal popular e inovador, o único da grande imprensa que defendeu João Goulart na época do golpe. Também cerceou o espaço, a liberdade e os recursos da imprensa alternativa, que na época conseguia atingir grande público, como os jornais O Pasquim, Opinião e Movimento.
O regime afastou personalidades da vida nacional impondo-lhes a necessidade de longo exílio, como foi o caso de Luís Carlos Prestes, Leonel Brizola, Miguel Arraes, Gregório Bezerra, José Ibrahim entre tantos outros. Pessoas que teriam feito a diferença nas articulações para organização eficiente da resistência e, sobretudo, no processo de redemocratização, mas que foram compulsoriamente afastadas da vida nacional.
O regime matou pessoas que ainda tinham muito a contribuir com o País, com ideias e com ações, como o metalúrgico Santo Dias, a estilista Zuzu Angel, os estudantes Stuart Angel Jones e Alexandre Vannucchi Leme, os ativistas Helenira Resende, Zequinha Barreto e Carlos Lamarca e os políticos Pedro Pomar, Maurício Grabois e Carlos Marighella.
Com isso, a ditadura alimentou uma imprensa mais elitizada e que defendia o avanço do neoliberalismo, criou ambiente para transição pactuada e indulgente e acuou partidos de esquerda e movimentos sociais, principalmente aqueles críticos ao liberalismo.
4. A ditadura escancarou o País para o capital internacional e para a política dos EUA.
Durante 21 anos, a ditadura esteve alinhada politicamente aos Estados Unidos da América. No Brasil, assim como em outros países da América Latina durante a Guerra Fria, os EUA exerceram um tipo de neoimperialismo econômico e cultural.
Tratava-se de sistema que ia na contramão da política antiliberal e pró-geração de emprego decente, direitos trabalhistas e aumento salarial, defendida por Getúlio Vargas e João Goulart.
A política econômica da ditadura baseou-se no arrocho salarial, na retirada de direitos, no aumento da dívida externa e na explosão da inflação, o que levou a progressivo empobrecimento e enfraquecimento da classe trabalhadora.
5. Pela reafirmação da democracia e da soberania, devemos conhecer a história do País.
No senso comum, o conhecimento sobre a ditadura militar no Brasil ainda é precário. Ideias vagas sobre golpe e intervenção, que muitas vezes surgem no debate político, não traduzem o que ocorreu em 31 de março/1º de abril de 1964, seus antecedentes e suas consequências. A carência deste conhecimento se agrava quando as novas gerações perdem vínculo com pessoas e entidades que passaram por aquele período difícil e a história não é transmitida.
Por outro lado, a construção permanente de nação democrática exige a compreensão das bases sobre as quais estão fundadas esta democracia. A consolidação de identidade nacional não deve ser feita só de símbolos, mas principalmente, de história compartilhada. O brasileiro cresce como cidadão quando domina sua história e esta é a essência de um país soberano.
O debate sobre a história é útil ao presente e ao futuro.
Encerrada há 39 anos, a ditadura militar ainda é assunto sensível para o País. Suas consequências permanecem nas relações sociais, políticas e econômicas. A ditadura mudou o curso do desenvolvimento, redirecionando-o para que a econômica de mercado prevaleça sobre interesses sociais. E a abertura democrática iniciada em 1985 foi processo que encontrou e ainda encontra grande resistência. Portanto, é fundamental que o povo se aproprie desta história.
Não se trata de revanchismo, muito menos de acusar o conjunto das Forças Armadas de golpistas e promotores da violência. Ao contrário, valorizar os exércitos, as policias e demais forças de defesa faz parte da construção de democracia altiva e soberana. Mas isso não significa fechar os olhos para os erros do passado.
O debate sobre a história diz respeito ao presente e ao futuro. Esse liberta a população de ciclo vicioso que a oprime e a aliena, proporcionando escolhas e caminhos que podem mover a sociedade para ciclo virtuoso e emancipador.
(*) Jornalista e coordenadora do Centro de Memória Sindical
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1 “Cidade: espaço de justiça e paz? Raízes da organização policial no Brasil”, Entrevista com Benedito Mariano, Revista Princípios, edição 97, em agosto de 2008.
O texto acima foi originalmente publicado no portal do Diap.
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